Já tinha até virado praxe. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Fomc (Federal Open Market Committee – Comitê Federal do Mercado Aberto, colegiado equivalente ao nosso Copom), manteve a taxa básica de juros quase zerada (entre 0,00% e 0,25% ao ano). Isso durou entre 2008 e 2015.
Para um país, poder rolar sua dívida interna praticamente sem nenhum custo, é uma dádiva. O Japão que o diga.
Vale acrescentar que, durante esses oito anos, a inflação americana média, de acordo com o CPI (sigla em inglês para Índice de Preços aos Consumidores), foi de 1,5%, com um pico de 3,0% (2011) e um low de 0,1% (2008).
Ou seja, os Estados Unidos cobravam para vender papéis do Tesouro.
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Ainda na gestão de Ben Bernanke, a taxa começou a subir. Foi até 2,44% em 2019. Como, nesse ano, a inflação (sempre considerando o CPI como referência) bateu 2,3%, já havia retorno real positivo. Merrequinha, mas havia.
Tudo indicava que o FED conseguiria inibir uma nova exuberância irracional (certamente Alan Greenspan jamais poderia imaginar que sua expressão faria parte constante do economês clássico) nas bolsas e trazer a economia para uma soft landing (aterrissagem suave).
O crash de 1929 e a Grande Depressão dos Anos Trinta nunca sai da mente dos chairmen, aos quais veio se juntar uma chairwoman: Janet Yellen (atual secretária do Tesouro de Joe Biden), que ocupou a principal cadeira do FED entre 2014 e 2018.
A covid muda a rota dos juros
Retomando o fio da meada, eis que, por volta de dezembro de 2019, surge na cidade de Wuhan, província chinesa de Hubei, um vírus que iria mudar a trajetória da Humanidade e dos mercados.
A partir daí, ao redor do planeta, foi um tal dos bancos centrais e governos baixarem taxas de juros e distribuírem fundos a fundo perdido (com minhas desculpas pela redundância) para a população confinada em suas casas.
Mais do que depressa, o FOMC retornou à taxa zero.
Dinheiro a rodo, carência de produtos (por causa das fábricas fechadas), falta de mão de obra... Só poderia resultar em alta de preços de mercadorias e serviços, que foi justamente o que aconteceu.
Repetimos os anos 1970 quando, após a guerra do Yom Kippur, tivemos o primeiro choque do petróleo. O segundo veio em 1980, com a revolução iraniana. O terceiro parece que chegou agora, com a guerra da Ucrânia.
Se alguém, há três anos, predissesse que a inflação americana chegaria a 8,5% ao ano, tal como foi divulgado há poucos dias pelo Departamento do Trabalho (U. S. Bureau of Labor Statistics), essa pessoa não seria levada em consideração.
Só que o mesmo (inflação muito acima do razoável) aconteceria na Alemanha, 7,4%, no Reino Unido, 4,9%, na França, 4,5%. Um escândalo para os europeus ocidentais.
Acontece que, em todos esses países, as taxas de juros não só estão no início do processo de alta, como esse processo poderá demorar alguns anos, já que a praxe é tratar a inflação com doses homeopáticas.
Caso contrário, surge o que os americanos chamam de hard landing (aterrissagem forçada), geralmente acompanhada de quebradeira.
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Como se proteger da alta dos juros e da inflação
No Brasil, após mais de meio ano com a taxa Selic em 2%, o Copom partiu na frente dos outros bancos centrais e não está muito longe do fim do ciclo.
Por enquanto, para os investidores, a pedida é a compra de papéis de renda fixa.
Acho que as bolsas, com exceção de alguns papéis específicos, ainda devem permanecer em bear market por algum tempo. Mas logo surgirão algumas oportunidades excepcionais.
Quem tiver a competência, ou a sorte, de detectar o pico da inflação e das taxas de juros, e comprar papéis com renda prefixada, poderá ganhar uma nota preta. Principalmente se tiver condições de alavancar.
Se, ao mesmo tempo, o mercado de ações estiver fazendo um fundo, poderá matar dois coelhos com uma só cajadada.
Logo os dividendos de ações que caíram muito superarão as taxas dos títulos de renda fixa.
O importante é não se afobar.
Uma sugestão para o momento é deixar o dinheiro em Tesouro Selic, até que os fundamentos fiquem mais transparentes.
Por fundamentos, estou me referindo à guerra na Ucrânia, à crise de abastecimento de petróleo e gás russo, à seca indiana, às eleições presidenciais brasileiras e ao novo surto de Covid na China, não necessariamente nessa ordem de importância.
Crise não é a primeira e nem será a última
Nos 64 anos em que trabalho no mercado financeiro, já vi diversas ocasiões tão ou mais complicadas como a atual.
Só para lembrar algumas:
Aqui em terras tupiniquins, o golpe militar de 1964, a hiperinflação dos anos 1980 e primeira metade dos 1990, o confisco do Collor, o ataque especulativo contra o real (final dos anos 1990) e outras similares.
Lá fora, a guerra do Vietnã, a crise de Watergate, os acima citados choques do petróleo, os ataques de 11 de setembro de 2001, etc.
Em todas elas, tanto no Brasil como no exterior, surgiram grandes oportunidades de ganhar dinheiro, assim como não menores riscos de se perder.
Eu ganhei uma grana preta em algumas delas e fui à lona em outras.
Saí, quase que de um dia para o outro, do pão com mortadela no botequim ao lado do escritório para “canard a l’orange” do La Tour d’Argent em Paris.
Agora vou com menos sede ao pote. Penso mais tempo e opero mais leve.