O futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, causou furor nos últimos dias com suas falas sobre eventual uso das reservas internacionais. Guedes condicionou o uso de parte dos US$ 380 bilhões a uma situação hipotética de eventual ataque especulativo, com posterior abatimento de dívida. Mas o fato é que já usamos esse “seguro” diariamente, não só como garantia nas os famosos swaps cambiais, mas como uma barreira constante a eventuais ataques especulativos e mesmo como uma forma de melhorar a percepção de risco do país quando o caldo entorna para os emergentes.
Ainda sobre a fala de Guedes, mesmo que em condições não factuais, o futuro ministro cometeu alguns pecados quando se trata de intervenção cambial. Mencionou um possível preço, de R$ 4 a R$ 5, e o montante que pretende usar para acalmar os ânimos do mercado e abater dívida pública, US$ 100 bilhões.
O primeiro pecado é que Guedes fala como ministro da Fazenda (ou da Economia) e reservas internacionais são da alçada de outro órgão, o Banco Central (BC). Não que os dois órgãos não se conversem, mas é o famoso “cada um no seu quadrado”. Ainda mais quando Guedes afirma que vai buscar a independência ou autonomia formal do BC e o regime em voga no país é de câmbio flutuante.
Além disso, o manual do bom banqueiro central ensina que: "intervenção cambial não se anuncia, se faz". De nada adianta o BC avisar ao mercado que vai atuar quando a cotação atingir referido preço e que vai dispor de tal montante para isso.
O sucesso de uma intervenção no câmbio é diretamente proporcional ao seu efeito surpresa. O BC tem de entrar no mercado para tirar o comprado ou o vendido da zona de conforto. Ou como dizem nas mesas, “tem que dar nos dedos do mercado”.
Descuidos à parte, pois o futuro ministro parece estar se acostumando com o burburinho de repórteres e ao natural tumulto de um “quebra-queixo”, Guedes tem profundo entendimento sobre o tema, pois de acordo com relato do “O Globo”, ele gosta de repetir que “só precisa desse nível elevado de reservas quem não faz ajuste fiscal”.
Yes! Nós temos reservas!
É natural que uma montanha de dinheiro de US$ 380 bilhões desperte todo tipo de interesses e “boas ideias”. Ao longo da campanha ouvimos planos infalíveis de usar parte desse dinheiro para pagar dívida, financiar investimentos em infraestrutura, saúde ou educação.
Debater academicamente se o patamar é elevado (ou não) ou se custa caro ou muito caro é expediente usual e saudável. Mas a questão de fundo é quais seriam as condições macroeconômicas gerais que permitiram sair desse debate para uma ação coordenada de venda de reservas. E tudo sugere que nunca estivemos, não estamos e parecemos um pouco longe de chegar a essas condições.
O déficit fiscal brasileiro é elevado e a trajetória de endividamento é explosiva. O cenário não é ainda pior, pois nos últimos anos saímos de um déficit externo de mais de 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB), geralmente associado a crises no balanço de pagamentos, para menos de 1% do PIB, com larga margem de financiamento pelo fluxo de investimento externo. Em outras palavras “sobra dólar” e isso ajuda a "comprar" um tempo para a aprovação das reformas.
Não fosse o ajuste externo, mas principalmente esses US$ 380 bilhões em reservas, certamente teríamos o mesmo destino da Argentina e da Turquia, que tiveram de subir o juro de forma rápida e para patamares hoje impensáveis de modo a lidar com uma fuga de capitais ou descrédito com relação à capacidade de pagamento de compromissos externos. Aliás, crises no balanço de pagamentos foram doença recorrente na história brasileira e são mazela contumaz nos ditos países emergentes.
Colocando de outra forma, um país com uma dívida bruta de 77% do PIB e zero de reservas internacionais não é avaliado por seus credores da mesma forma que um outro país com os mesmos 77% de dívida, mas com reservas de cerca de 20% do PIB, que é o nosso caso. Assim, as reservas são um seguro, um colchão de liquidez, e um contraponto à expansão da dívida pública.
Quanto custa um seguro contra crises?
O custo das reservas decorre do fato de elas terem sido formadas com a emissão de dívida doméstica, grosso modo a taxa Selic, mas estão aplicadas em títulos da dívida americana, que retornam um juro menor. Em outras palavras, somos financiadores dos EUA, carregando mais de US$ 371,8 bilhões em títulos. Entre os maiores detentores de dívida americana perdemos apenas para a China, com US$ 1,165 trilhão, e o Japão, com US$ 1,029 trilhão, segundo dados do Tesouro dos EUA.
O nosso dinheiro está em títulos americanos não por sermos "entreguistas" ou por "subserviência à CIA", mas pelo simples fato de que os Treasuries são considerados “quase dinheiro”, ou seja, apresentam liquidez imediata em caso de necessidade. E quando há uma crise, todo mundo só pensa em liquidez e em dólar. Há uma pequena parcela em ouro físico e outros ativos.
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado fez um estudo detalhado sobre o tema em 2017, onde mostra essa relação da Selic com o custo. Quanto maior a Selic, maior o custo de carregamento. Na época do estudo, esse custo em percentual das reservas rondava os 12%, mas deve estar pouco menor, já que Selic caiu e juro americano aumentou.
Podemos fazer críticas ao custo e ao tamanho das reservas, mas o fato é que essa avaliação não pode ser feita sem levar em conta os benefícios que essa montanha de dólares representa.
É muito difícil fazer um contrafactual do que seria o país sem as reservas. Além disso, as reservas são instrumento de outra missão do BC, que além de garantir o poder de compra da moeda, tem de preservar a estabilidade financeira. Embora pareça pouco palpável, a estabilidade do sistema financeiro é um bem público. Crises financeiras deixam marcas indeléveis na vida de todos.
Vender reservas em um momento como o atual ou sem fazer o devido ajuste nas contas fiscais seria como cancelar o seguro contra incêndio assim que a casa começasse a pegar fogo.
Para mostrar que não estou falando sozinho, cito aqui partes de um artigo recente do ex-chefe do Departamento das Reservas Internacionais (Depin), do Banco Central, Ariosto Revoredo de Carvalho.
Carvalho lembra que estudos feitos por vários BCs e pelo Fundo Monetário Internacional se debruçam sobre o assunto do volume ideal de reservas. Mas se algumas métricas indicam que nossas reservas são altas, a comparação com outros países indica que estamos na média. Não somos um ponto fora da curva.
"Esse volume de reservas é sempre mencionado como uma das grandes defesas para enfrentar as turbulências no mercado, ao longo dos últimos anos. Mais de uma vez já ouvimos a frase: 'ainda bem que vocês têm as reservas'. O uso das reservas, como se fossem uma poupança à nossa disposição, pode e deve ser estudado, mas devemos sempre ter em mente que elas foram criadas através de dívida, isto é, tiveram um custo para serem acumuladas, e que sua função de seguro contra crises, importadas ou não, não pode ser subestimada. O fato é que já usamos as reservas e, pelas evidências, de forma adequada."*
Reservas e swaps cambiais
Uma forma de garantir um sistema financeiro sólido e eficiente é oferecer proteção cambial ao setor privado em momentos de instabilidade. Para fazer isso, o BC conta com alguns instrumentos, como a venda de reservas, leilões de swap e leilões de linha com compromisso de recompra.
Vamos centrar atenção nos swaps, pois é o instrumento principal que vem sendo utilizado nos últimos anos, já que desde o começo de 2009 o BC não compra ou vende reservas.
O swap é um derivativo que relaciona a variação cambial com a taxa de juros em determinado período de tempo. Ele é engenhoso pois é capaz de prover proteção cambial com toda sua liquidação acontecendo em reais. Não se gasta um centavo das reservas.
De forma simplificada, no swap tradicional, que equivale à venda de dólares no mercado futuro, o BC é ganhador quando o dólar cai e perdedor quando a moeda americana sobe ante o real. Há o swap reverso, que como o nome diz, equivale à compra de moeda no mercado futuro.
O fato é que o mercado aceita os swaps e eles funcionam em momentos de instabilidade porque há um lastro nas reservas internacionais. Para cada “dólar sintético” vendido pelo BC há uma quantia bastante superior em “dólares de verdade” nas reservas internacionais. Não fosse isso, os investidores certamente demandariam “dólar de verdade” para proteger sua exposição ao real.
No ápice da política de uso dos swaps, o estoque de operações passou os US$ 100 bilhões, entre 2015 e 2016, reflexo de uma “ração diária” iniciada em 2013, instituída para lidar com os primeiros acenos do Federal Reserve (Fed), banco central americano, sobre uma normalização de sua política monetária. Ao longo de 2016, o BC tirou contratos de circulação, deixando os swaps vencerem ou atuando com o swap reverso.
Agora, o estoque está na casa dos US$ 68,8 bilhões, com o BC fazendo apenas a rolagem dos contratos vincendos. A última colocação líquida de novos contratos aconteceu em junho e agora, com a cotação do dólar testando a linha dos R$ 3,70, passa a se discutir qual seria a postura do BC. Manter as rolagens integrais, fazer rolagens parciais ou retirar contratos do mercado com swaps reversos. Nesta quinta-feira, o BC começa a rolagem integral do lote de US$ 12,2 bilhões que vence em dezembro.
Os swaps implicam em custo fiscal, pois seus ajustes são creditados na conta de juros do governo. Em 2015, a fatura fechou o ano em quase R$ 90 bilhões, resultado de uma alta de quase 50% do dólar. Em 2016, com a queda do dólar e do estoque, o BC embolsou R$ 75,5 bilhões. No ano passado, o ganho foi de R$ 7 bilhões e agora em 2018, a conta está negativa para o BC em R$ 3,2 bilhões.
Para encerrar, sempre que ouvir ou ler o termo “crise” e ver os mercados se desmanchando em vermelho na tela do home broker, lembre-se de pensar: ainda bem que temos reservas.