Os mercados globais estão explorando há tempos a casa mal-assombrada da guerra comercial. E, por mais que tenham levado alguns sustos no meio do caminho, até que estavam conseguindo caminhar pelos corredores sem se sentirem muito intimidados: afinal, as bolsas dos EUA e o Ibovespa têm conseguido se manter em níveis elevados.
Só que, nesta quarta-feira (14), uma assombração pulou das paredes e encarou fixamente os agentes financeiros: o risco de recessão econômica mundial. E, petrificados com a imagem assustadora que se materializou num piscar de olhos, os mercados hesitaram — e perderam toda a coragem.
Como resultado, o Ibovespa fechou com forte queda de 2,94%, aos 100.258,01 pontos — o pior pregão desde 27 de março, quando o principal índice da bolsa brasileira caiu 3,57%. E olha que o mercado doméstico ainda conseguiu se afastar do momento de maior pessimismo: na mínima, tocou os 99.954,75 pontos (-3,24%).
O abalo também foi sentido lá fora: nos Estados Unidos, o Dow Jones (-3,05%), o S&P 500 (-2,93%) e o Nasdaq (-3,02%) despencaram em bloco; na Europa, as principais praças acionárias recuaram perto de 2% — o índice pan-europeu Stoxx 600 fechou em baixa de 1,68%.
Por fim, o coração do mercado de câmbio também disparou com o espanto: por aqui, o dólar à vista subiu 1,79%, a R$ 4,0388 — o maior nível desde 23 de maio, quando era cotado a R$ 4,0475. No exterior, a moeda americana subiu forte em relação a quase todas as divisas de países emergentes.
O fantasma da recessão global não é novo: os agentes financeiros já vinham escutando os uivos há algum tempo, mas sempre acabavam sacudindo o medo. Um raio de sol na forma de corte de juros aqui, um clarão sob o formato de acertos temporários entre americanos e chineses ali — tudo dava coragem aos mercados, fazendo-os acreditar que a assombração não iria atormentar as negociações.
Mas dados econômicos desanimadores na China e na Alemanha, somados a um mau presságio nos Estados Unidos, deixaram os mercados de cabelo em pé.
Os fantasmas se divertem
O gelo na espinha dos agentes financeiros teve origem na Ásia: a produção industrial da China desacelerou a 4,8% em julho, a menor alta da indústria do país desde 2002. Além disso, as vendas no varejo no gigante asiático subiram 7,6% no mês passado — ambos os indicadores ficaram abaixo das projeções dos analistas.
E o calafrio ganhou ainda mais força com a divulgação do PIB da Alemanha no segundo trimestre deste ano, mostrando uma contração de 0,1% na atividade econômica do país europeu. Tais resultados elevaram a percepção de que a guerra comercial entre EUA e China — e os constantes atritos entre o governo Trump e as lideranças da zona do euro — estão impactando negativamente a economia global.
"Os dados da China sugerem que a segunda maior economia do mundo está desacelerando, e esse processo está ocorrendo num ritmo maior que o esperado", diz Luciano Rostagno, estrategista-chefe do Banco Mizuho do Brasil, ponderando que o mercado segue preocupado com os rumos da guerra comercial.
Para ele, a sinalização mais amistosa do governo americano na tarde de ontem, ao postergar o aumento nas tarifas de importação sobre determinados produtos chineses — especialmente eletrônicos e roupas — não afasta as dúvidas em relação às disputas entre as potências.
"O que vemos é um impacto já negativo da guerra comercial para a economia mundial — e sem uma perspectiva de resolução no curto prazo", afirma Rostagno. "Isso deixa os investidores mais aversos ao risco, e penaliza os ativos de países emergentes".
Mau presságio
O susto derradeiro veio dos mercados americanos: nesta quarta-feira, o rendimento dos títulos do Tesouro de 10 anos chegou a ficar abaixo do retorno dos papéis de dois anos — a chamada inversão da curva de juros.
O fato de os Treasuries mais curtos estarem com um rendimento superior aos títulos longos pode ser interpretado como um sinal de que os investidores estão preocupados com o risco de recessão nos Estados Unidos. Em outras palavras: o mercado tem dúvidas quanto às perspectivas para a economia americana no futuro, preferindo se atrelar a compromissos de menor prazo.
Esse fenômeno não ocorria desde 2007, e economistas e analistas alertam que todas as grandes recessões da economia americana foram precedidas de períodos em que essas duas curvas se inverteram — um histórico que trouxe enorme tensão às negociações no mundo.
Vale lembrar, ainda, que já é observada há algum tempo a inversão entre os rendimentos títulos do Tesouro de três meses e de 10 anos — no entanto, é a relação entre as curvas de dois e 10 anos que é vista como crucial para os mercados.
E, para completar o filme de terror, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi ao Twitter para comentar o atual estado das negociações com a China — e a inusitada situação das curvas de juros do país. E digamos que o republicano não usou palavras exatamente sutis para falar sobre o tema.
Segundo Trump, os Estados Unidos estão vencendo tranquilamente a disputa com a China. "As companhias e os empregos estão deixando [o país asiático]", escreveu o presidente americano, afirmando que, nos EUA, os preços não subiram e, em alguns casos, até recuaram. "A China não é nosso problema".
..Spread is way too much as other countries say THANK YOU to clueless Jay Powell and the Federal Reserve. Germany, and many others, are playing the game! CRAZY INVERTED YIELD CURVE! We should easily be reaping big Rewards & Gains, but the Fed is holding us back. We will Win!
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) August 14, 2019
Para Trump, o problema é o Federal Reserve (Fed), o banco central do país — que, em sua visão, subiu os juros num ritmo muito elevado e em magnitude excessiva. "O spread está muito elevado, e outros países agradecem o incompetente Jerome Powell", disse ele, classificando a inversão da curva de juros como "maluca".
Câmbio assustado
Novamente, a nebulosidade do cenário global fez os agentes financeiros agirem como que por reflexo no mercado de câmbio: a tensão com a economia mundial disparou um movimento de fuga de ativos de risco, como as moedas de países emergentes, em direção a opções mais seguras, como o dólar.
Assim, a divisa americana ganhou terreno em relação ao peso mexicano, o rublo russo, o peso colombiano, o rand sul-africano, o peso chileno e o dólar neozelandês, entre outras — e o real foi na esteira desse movimento.
Juros tensos
No Brasil, a curva de juros acompanhou o movimento do dólar à vista e fechou em alta, em ambas as pontas. As preocupações no exterior acabaram se sobrepondo ao otimismo com o cenário local — ontem, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base da MP da Liberdade Econômica; ainda por aqui, os senadores fecharam acordo para votar o primeiro turno da reforma da Previdência em 18 de setembro.
Na ponta curta, os DIs para janeiro de 2021 avançaram de 5,38% para 5,46%; na longa, as curvas com vencimento em janeiro de 2023 subiram de 6,36% para 6,47%, e as para janeiro de 2025 foram de 6,87% para 6,95%.
Pressão no Ibovespa
Todo esse sentimento negativo visto nos mercados externos se traduziu num movimento vendedor que afetou o Ibovespa como um todo — nenhuma ação que compõe o índice conseguiu terminar o dia no campo positivo.
A pressão mexeu especialmente nas blue chips, ou seja, as ações de maior liquidez e grande peso individual do Ibovespa. Tais papéis, como Petrobras, Vale e bancos, costumam concentrar a atuação dos investidores estrangeiros — e, assim, a maior aversão ao risco lá fora puxa esses ativos para baixo.
Entre os bancos, as units do Santander Brasil (SANB11) caíram 3,00% e as ações ON do Banco do Brasil (BBAS3) recuaram 3,49%. Os papéis do Bradesco também caíram forte: os PNs (BBDC4) tiveram baixa de 1,96%, e os ONs (BBDC3) exibiram queda de 2,66%. Por fim, Itaú Unibanco PN (ITUB4) tiveram perda de 2,20%.
Já os papéis da Petrobras foram pressionados pelo mau desempenho do petróleo no exterior, tanto o WTI (-3,27%) quanto o Brent (-2,97%). Nesse cenário, as ações ON da estatal (PETR3) caíram 3,08%, e as PNs (PETR4) recuaram 3,37%.
Por fim, a Vale e as siderúrgicas tiveram um dia bastante negativo, uma vez que a preocupação em relação à economia chinesa afeta diretamente essas empresas — a China é um importante consumidor global de minério de ferro e de aço. Assim, Vale ON (VALE3) caiu 3,48%, CSN ON (CSNA3) recuou 4,14%, Gerdau PN (GGBR4) teve baixa de 4,22% e Usiminas PNA (USIM5) desvalorizou 4,89%.
Destaque, ainda, para a temporada de balanços corporativos: Embraer e Kroton reportaram recentemente seus números trimestrais, mas os resultados não agradaram os mercados.
A fabricante de aeronaves reverteu o prejuízo de R$ 485 milhões visto nos segundo trimestre do ano passado e reportou lucro de R$ 26,1 milhões entre abril e junho de 2019 — apesar disso, as ações ON da Embraer (EMBR3) caíram 5,85% nesta quarta-feira.
Já Kroton ON (KRTO3) despencou 11,55% e liderou as perdas do Ibovespa — a companhia viu seu lucro cair 44% na base anual, para R$ 266,7 milhões.