O que Luiz Barsi não entendeu sobre Eneva
Não podemos confundir o apreço pessoal de Luiz Barsi por dividendos com a decisão correta de alocação de capital e política de proventos de Eneva e AES.
A primeira coisa que preciso dizer é:
eu respeito muito o senhor Luiz Barsi.
Invertendo a provocação clássica, Nassim Taleb costuma propor uma pergunta
irônica: “If you are so rich, why aren't you so smart?”. Desta vez, preciso
discordar dele. Em Bolsa, estamos para ganhar dinheiro. Não para estarmos
certos. Então, situações patrimoniais maiores exigem respeito adicional. Manda
quem pode, obedece quem não tem tanto juí$o. Estando eu dois zeros atrás na
situação patrimonial, largo atrás nesta inequação argumentativa.
Com efeito, a verdade é que eu respeito todas as opiniões e os métodos de
investimento, ainda que deles possa discordar diametralmente, como é o caso.
Mais até do que respeito, neste caso, admiro, sinceramente, o patrimônio
construído por Luiz Barsi e a sua, em diversas situações, manifestada
humildade, virtude rara no mercado financeiro.
Dito isso, superada a questão ad
hominem, quero tratar de sua opinião manifestada na última sexta-feira sobre o
potencial deal entre Eneva e AES Tietê. Faço isso, claro, não por um pretenso
embate pessoal. Gostaria que essa proposta argumentativa se limitasse,
exclusivamente, aos elementos técnicos e financeiros. Os embates dialéticos
deveriam se limitar a eles, sem adentrar supostas polêmicas pessoais. Só assim
poderemos partir, por superação positiva, de uma tese ainda incompleta para uma
síntese superior.
Minha admiração e respeito pelo senhor Barsi seguem inabalados.
Ressalvas feitas, vamos lá.
Para deixar todos na mesma página, ao final da semana passada o Sr. Barsi se
manifestou contrariamente à proposta da Eneva à AES. Se eu pude entender bem,
sua manifestação poderia ser resumida em três pilares: i) ESG (Environmental,
Social, and Governance), com críticas à "matriz poluente de Eneva”; ii)
momento ruim de mercado para uma venda de ativos, depreciados por conta da
crise; e iii) falta de uma política clara de dividendos. Desses, o terceiro
ponto seria, segundo argumenta, suficiente sozinho já suficiente para barrar a
operação. Ipsis litteris, temos: “A omissão de qualquer compromisso sobre a
distribuição de dividendos desta possível nova gigante do setor de geração fala
por si só e, para mim, foi suficiente para concluir que ela não teria lugar
cativo na minha carteira”.
Ontem, o Conselho de Administração da AES Tietê decidiu rejeitar a oferta feita
pela Eneva, alegando incompatibilidade e apresentando argumentos razoavelmente
semelhantes. Apesar disso, disse estar aberto a uma nova proposta, que deveria
contemplar a possibilidade de liquidez integral para os acionistas. Então,
entendo que ainda passará muita água sob essa ponte.
Com o texto de hoje, tenho dois objetivos. Primeiramente, mostrar como os
argumentos apontados pelo Sr. Barsi carecem de sustentação. Depois, opinar
favoravelmente à fusão, num posicionamento que pode servir como orientação aos
acionistas da AES Tietê sobre a questão.
Começo do final, da crítica à falta de uma política clara de distribuição de
dividendos — talvez por ser o elemento mais fácil de ser rebatido, ainda que
tenha sido por ele apontado como o mais importante.
Não consigo deixar de mencionar Warren Buffett. Sua Berkshire Hathaway nunca
pagou dividendos. Mais até: em carta recente aos acionistas, Buffett
desmistificou a relevância dos dividendos, se posicionando, em alguma medida,
contrariamente a eles. A distribuição de proventos só deveria ocorrer quando
não há alternativas melhores à companhia para reinvestir seus lucros. Ora, se
para ele um dos critérios mais importantes para definir a atratividade de uma
ação é o ROIC recorrente (retorno sobre o capital investido; ou seja, a
capacidade estrutural de alocação de capital em projetos rentáveis), a
distribuição de dividendos seria apenas uma sinalização da falta da capacidade
da empresa em investir em projetos de alto retornos. Mau sinal.
Mas não quero aqui apenas apelar para o argumento de autoridade, sustentando-me
na opinião geral do maior investidor do mundo sobre o pagamento de dividendos —
ainda que, claro, Buffett costume ser um bom caminho a se seguir.
A verdade é que a não divulgação de uma política clara de distribuição de
dividendos por parte da Eneva é uma excelente notícia. Seria uma enorme
destruição de valor pagar proventos gordos se estamos diante de projetos com
TIR real desalavancada de 15% — aliás, é isso que faz de Eneva uma das ações
mais atrativas da Bolsa, no meu entendimento.
É tão simples quanto isso. Não podemos confundir o apreço pessoal de Luiz Barsi
por dividendos com a decisão correta de alocação de capital e política de
proventos de Eneva e AES.
Falemos agora de ESG. Confesso certa perplexidade ao ver a preocupação do Sr.
Barsi com esse ponto. Pelo que posso me lembrar, ele investe (ou investiu por
muito tempo) em empresas do setor petroquímico (altamente poluente), em
fabricante de armas e em companhia que usa amianto. Então, ou houve aqui uma
súbita (e não informada) mudança completa de paradigma do investidor em direção
a preocupações com ESG ou a postura carece de coerência.
Deixemos a coerência de lado. Vamos quebrar um pouco o tal ESG, seguindo a
ordem natural da coisa. As usinas da AES Tietê têm reservatórios enormes. Eles
geraram um impacto ambiental relevante — e, em alguma medida, continuam
gerando, porque inundaram regiões. A Eneva queima gás natural, ok, mas é a
forma mais eficiente para uma matriz térmica, que é fundamental para o Brasil —
aliás, foi ela que já nos salvou do apagão e nos salvaria de novo se não fosse
pela súbita depressão econômica de 2020. Construir térmica a gás substituindo a
matriz anterior a diesel ou a carvão não significa reduzir as emissões?
Agora, sobre o “S”: a Eneva gera um impacto social brutal no Maranhão, trazendo
recurso de arrecadação dos royalties especiais pagos e geração de empregos
diretos e indiretos em regiões muito pobres. É desenvolvimento social na veia.
Isso precisa ser levado em conta.
Por fim, a governança da Eneva é bastante correta, com acionistas controladores
alinhados, listada no Novo Mercado, enquanto a AES, que está apenas no Nível 2
de governança, só tem um conselheiro independente, está forçando a barra para
não chamar assembleia para votar a fusão e é tocada muito mais parecida com uma
corporation americana, não necessariamente alinhada com o interesse dos
minoritários, com uma estrutura de custos e despesas bem elevada — para ver o
mato alto, basta olhar a relação de custos e despesas sobre megawatt e notar
sua discrepância frente a outros nomes do setor.
Não me parece, de fato, que a preocupação de ESG seja um elemento genuíno capaz
de barrar a fusão.
Então, chegamos ao terceiro argumento: o momento não é ideal para se vender
ativos. Reconheço: talvez esse seja o argumento mais sustentável. Eu concordo
com ele, a despeito de ele ter sido elencado atrás da suposta importância de se
pagar dividendos, com o que jamais poderia concordar. Mas pondero: quando é o
momento ideal? O grande problema das coisas ideias é que elas existem apenas no
mundo das ideias. E eu não vivo nele. Mesmo se vivesse, suponho que meus
boletos continuariam a ser compensados no mundo real.
Aqui, o argumento otimista parece contar com uma eventual outra proposta de
compra por AES ou com uma guerra de preços semelhante àquela acontecida no caso
da Eletropaulo — e essa comparação não poderia ser mais imprecisa. Ao comprar
uma concessão de distribuição de energia com tarifa baixa na cidade mais rica
de SP, como foi com a Eletropaulo, você garante a possibilidade de continuar
alocando capital em infraestrutura (com medidor inteligente ou enterrando cabo,
por exemplo), a uma taxa de retorno alto — são bilhões de reais todo ano nisso.
Já ao comprar a AES Tietê, você basicamente está comprando o fluxo de caixa de
ativos com duration razoavelmente curto, de sete a oito anos; o upside de novos
projetos é legal, ok, mas vai permanecer. Não há espaço para uma guerra de
preços tão expressiva como aquela; talvez possamos advogar em prol de algo entre
10% e 20% a mais na oferta, mas dificilmente algo superior a isso. Então, entre
aceitar agora uma proposta em direção a uma companhia (garantida) muito melhor
e esperar algo potencialmente (incerto) superior no futuro, me parece muito
mais razoável seguir pelo caminho da associação.
A alternativa seria a AES seguir sozinha ou contar com uma — até agora
inexistente — outra proposta de fusão. Há desafios estruturais marcantes no
modelo de negócios e nas características dos ativos da AES. Do seu portfólio, 80%
está concentrado em fonte hídrica e sem energia contratada a longo prazo. Isso
resulta em alta sazonalidade. O regime hidrológico já tem alto componente
sazonal, obviamente, mas, além disso, resulta num efeito alavancado nas curvas
de PLD (Preço de Liquidação das Diferenças) e GSF (Generation Scaling Factor;
medida de risco hidrológico). Como consequências, temos a alta volatilidade dos
fluxos de caixa e menor previsibilidade de resultados, que costumeiramente
tentam ser compensados como “seguros” caros, como subcontratação e compra de
energia.
Além disso, dado o duration razoavelmente curto de seus projetos (maior parte
dos fluxos de caixa concentrada nos próximos dez anos), a companhia se vê
obrigada a acelerar investimentos para garantir a perpetuidade dos negócios,
sendo que a companhia não goza de expertise em projetos greenfield e tem um
plano de incentivo distorcido, baseado em ações do management da AES Tietê sem
estar atrelado aos resultados da própria companhia, mas, sim, da AES Corp
(controlador).
Uma associação com Eneva endereçaria, se não a integralidade, boa parte desses
problemas. Há uma perfeita combinação de negócios em favor de se reduzir a
sazonalidade de resultados — o risco hidrológico aqui é negativamente
correlacionado para cada uma das companhias. A contrapartida disso é óbvia:
menor volatilidade dos fluxos e maior previsibilidade de resultados, com
redução do custo de capital, otimização da estrutura de capital e dispensa de
parte dos tais “seguros” caros contra o risco hidrológico. No caso da Eneva, a
companhia está quase toda contratada em PPAs de longo prazo, mas o nível do
despacho ainda traz volatilidade aos fluxos. Para AES, os acionistas estariam
bem menos expostos ao preço de longo prazo de energia e também aos problemas do
GFS.
Ademais, a união de forças formaria uma gigante no setor, com um brutal fluxo
de caixa e enorme capacidade de investimento. As melhores oportunidades de
alocação de capital estão no pipeline justamente de Eneva, que poderia usar o
grande cash flow de AES Tietê para financiar esse capex, contando com um
management já experimentado, com demonstração inequívoca de capacidade de
alocação de capital e montagem de projetos greenfield.
Esse novo “monstro” no setor elétrico poderia elevar substancialmente seu nível
de alavancagem combinado, dado que a AES Tietê hoje tem um patrimônio líquido
pequeno e isso reduz sua capacidade de alavancagem — com alguma tranquilidade,
o patamar de dívida líquida sobre Ebitda poderia ser levada a algo perto de 3
vezes no médio prazo.
A partir dessa realavancagem, teríamos “tax shield” sobre projetos eólicos e
solares, ao que se somaria ágio relevante da operação, que seria aproveitado
num prazo de dez anos.
Uma fusão dessa natureza geraria, claro, sinergias importantes. Da ordem de
despesas corporativas, estima-se algo como R$ 150 milhões entre sinergias e
maior eficiência das operações, com um NPV próximo a R$ 1,1 bilhão (ou R$ 2,70
por unit de AES Tietê). A isso, poderíamos somar algo como R$ 300 milhões de
otimização da estrutura de capital (R$ 0,75 por unit), R$ 575 milhões de
melhora na estrutura tributária (R$ 1,45 por unit) e uma mais valia de R$ 515
milhões assumindo R$ 3,5 bilhões de ágio (R$ 1,30/unit). Estaríamos falando de
mais de R$ 6 por unit em sinergias. Tudo num player que ganharia enorme
liquidez em Bolsa e passaria a ser relacionado nos índices com alguma
relevância. Definitivamente, não é de se jogar fora.
O problema de ter como vocação dar opiniões é que… bem… você precisa dar
opiniões.
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