Por volta de abril do ano passado, logo após a Covid-19 se espalhar pela Europa Ocidental e Estados Unidos, vinda da Ásia, e descer para a América do Sul, dei uma entrevista sobre as perspectivas das ações das empresas aéreas.
Naquela ocasião, os voos de carreira começavam a ser cancelados mundo afora. Com exceção dos aviões cargueiros, o céu estava ficando vazio.
Me lembro de quando um grande amigo, comandante Luciano Mangoni, da Turkish Airlines, e meu parceiro no livro Voo Cego, me enviou uma mensagem enquanto sobrevoava a Groelândia.
Ele transportava, através da rota polar, insumos medicinais chineses para Los Angeles, Califórnia.
“A impressão que tenho, Ivan, é que voltamos aos dias que se seguiram ao 11 de setembro. Os aviões sumiram do espaço aéreo.”
Voltando à minha entrevista:
“Neste cenário, as empresas aéreas só não irão à falência se receberem auxílio dos governos”, eu disse ao entrevistador. “Caso contrário, quebra todo mundo”, concluí.
Como não podia deixar de ser, a crise afetaria de igual modo os fabricantes de aviões. Se estes não voam, as companhias aéreas não compram e cancelam as encomendas já feitas.
Antes da Covid-19 surgir na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China, a indústria aeronáutica já não estava bem.
Em 2019, a Airbus anunciara o fim da fabricação de seu gigante A380, superjumbo que, conforme a configuração dos assentos, pode transportar até 800 passageiros em classe econômica.
Sua grande concorrente, a Boeing Company, não vivia situação melhor.
Todas as apostas da mastodonte de Seattle estavam concentradas em seu modelo revolucionário: 737 Max.
Pois não é que dois deles caíram logo após a decolagem: o primeiro, da Lion Air, da Indonésia, no mar de Java; o segundo, da Ethiopian Airlines, minutos após partir do Adis Ababa Bole International Airport com destino ao Quênia.
Não restou à FAA – US Federal Aviation Administration –, dos Estados Unidos, reter no solo todos os MAX espalhados pelo mundo, mesmo porque agências aeronáuticas de outros países já haviam tomado a medida antes dos americanos.
Num plano economicamente inferior, a brasileira Embraer concorria com a canadense Bombardier no segmento de aviões destinados a voos de média distância (aviação regional ou commuter aviation).
Como não podia deixar de ser, a crise da pandemia chegou imediatamente à indústria aeronáutica, que já passava por grande transformação.
A Bombardier fora absorvida pela Airbus, obrigando a Embraer a fazer a mesma coisa.
Acontece que a companhia brasileira não tinha outra alternativa a não ser a de se associar com a Boeing – justamente o que aconteceu.
A fusão das duas empresas foi decidida em 2018. De acordo com os termos do contrato assinado entre as partes, os americanos absorveriam o setor de aeronaves comerciais da sócia brasileira.
Eis que, em plena crise da Covid-19, com o comércio de aviões praticamente parado, a Boeing desistiu de sua parceria com a Embraer. Isso ocorreu em 25 de abril de 2020.
Heroicamente, empurrando despesas com a barriga, enxugando pessoal, se endividando, a Embraer sobreviveu.
Por incrível que possa parecer, após toda essa recessão no setor aeronáutico, as ações da companhia de São José dos Campos e Gavião Peixoto recuperaram seu valor em Bolsa.
Em grande parte, isso se deveu à criatividade da empresa.
Como exemplo mais marcante dessa característica, ela acaba de anunciar uma fusão de US$ 2 bilhões entre a sua subsidiária Eve Urban Air Mobility, que desenvolve carros elétricos voadores de pouso vertical (VTOL – Vertical take-off and landing), e a Zanite Acquisitions.
Em apenas uma semana, o veículo revolucionário recebeu 250 encomendas.
Mas não seria uma história meio inverossímil esse negócio de carro que voa? Coisa de filme de ficção científica, revista de quadrinhos ou desenho animado japonês?
Não.
Não na Embraer.
Só que, para sentir firmeza, temos de conhecer a história da companhia.
Tudo começou em 16 de janeiro de 1950, quando o governo brasileiro inaugurou, em São José, uma escola de formação de engenheiros aeronáuticos, o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).
Como, naquela época, o Brasil não fabricava nem automóveis, os alunos do ITA, ao se formarem, só tinham duas opções:
- dar aulas no próprio instituto.
- ir trabalhar no exterior, onde encontravam emprego facilmente, principalmente em oficinas de manutenção de empresas aéreas.
Dezesseis anos depois da criação do ITA, o governo inaugurou a primeira indústria de porte de fabricação de aviões.
Antes havia algumas empresas que montavam monomotores de acordo com projetos concebidos em outros países.
Foi o caso da Neiva, por exemplo, que fabricava aqui os Paulistinhas (Cap-4) e do Parque Aeronáutico de Lagoa Santa, MG, onde eram montados aviões de treinamento Fokker T-21 e T-22.
Logo ficou constatado que a qualidade das aeronaves fabricadas pela Embraer era excelente.
Só que a paixão de seus projetistas por aviões fez com que a empresa pecasse no quesito “economia de escala”. Ao invés de dois ou três modelos, o que lhes daria um preço de venda competitivo, eles trabalhavam com especificações as mais diversas.
Numa lista que não acabava nunca, as linhas de produção se dividiam entre os planadores Urupema, os monomotores Ipanema, Carioca, Corisco, Tupi, Minuano e Sertanejo.
Já na categoria dos bimotores, havia o Seneca e o Navajo.
Turboélices: Bandeirante, Brasília, Xingu, Carajá, Vector.
Fora os militares.
Era modelo demais. Por isso, a empresa não conseguia dar lucro e acabou sendo privatizada em 1994.
De lá para cá, passou a ser a terceira maior fabricante de aviões do mundo, perdendo apenas para a Boeing e a Airbus, que se alternavam na liderança.
Um dos modelos da Embraer, o Tucano, mais tarde seguido pelo Super Tucano, ambos aviões militares de treinamento, foram vendidos para as forças aéreas de vários países, inclusive a mítica RAF (Royal Air Force).
Agora sempre voltada para o lucro, a Embraer passou a produzir jatos de passageiros de mais de 100 lugares, entre eles o ERJ-145 e o E195-E2, este último o maior avião comercial de fabricação brasileira.
Entre os jatos executivos, destacam-se o Legacy e o Phenom.
Pois bem, em plena crise do setor, causada pelo novo coronavírus, veio a ideia da associação para fabricar o carro elétrico aéreo Eve.
Imaginemos dois ricaços.
Um deles é brasileiro, mora numa mansão em Indaiatuba e tem seu escritório na Faria Lima. Ele vai poder pegar o Eve todas as manhãs em sua casa e pousar no heliponto do prédio de seu escritório na Faria Lima.
O outro é americano. Reside em Greenwich, Connecticut, o condado de maior renda per capita dos Estados Unidos. Trabalha em Lower Manhattan. Seu trajeto será de casa até o Battery Park, algumas quadras ao sul de Wall Street.
Como podemos ver, desde a fundação do ITA, em 1950, os magos de São José dos Campos têm conseguido se reinventar. Depois do Eve, surgirá alguma outra coisa impactante na Embraer. Disso não tenho a menor dúvida.