Fiz meu primeiro investimento em ações aos 13 para 14 anos. Copiando meu pai, comprei PLIM4. Era Globo Cabo, carinhosamente apelidada de “Globo Nabo”.
De maneira literal, investimento raiz, com o resultado típico da planta crucífera. Azar de principiante para marcar um belo nabo. Batismo de sangue. Enquanto a família Miranda comprava, o smart money local desovava as ações, ciente do emaranhado de dívida e das dificuldades operacionais da companhia — se a memória não me trai, acho, embora não tenha tanta certeza disso, que a Skopos era a grande vendedora, quando Luis Guilherme e Pedro Cerize formavam uma espécie de Pelé e Coutinho da gestão de ações paulista. A Dynamo já era a Dynamo e joga em uma categoria à parte.
Ontem, fiz meu último — até agora, claro — investimento em ações. Como sou impedido por restrições de compliance e regulatórias de comprar ações diretamente, aportei no fundo Oportunidades de Uma Vida, da Vitreo.
Foi uma grande jornada nesses 21 anos e, sem dúvida, também uma enorme transformação.
Hoje, sou o maior cotista individual desse fundo. Ah, sim, antes que me acusem de ter abandonado o primogênito: também sou o maior cotista individual do fundo Carteira Universa e da Vitreo como um todo. “Skin in the game” — aqui, se pratica o que se fala. Já falo um pouco mais sobre princípios.
Será que haveria um meio de resumir essas mais de duas décadas como investidor de ações de forma estruturada? Existiria uma maneira de condensar tudo o que aprendi nessa trajetória num único projeto, algo que pudesse servir como uma espécie de legado? Uma síntese talvez da minha experiência? Todos os meus erros, acertos, tombos, home runs, método, filosofia, epistemologia, dicas, atalhos, heurísticas, livros, palestras, lives, teoria e prática?
Claro que isso não vai vir em forma de uma lista de dez coisas que você precisa saber ou uma relação dos meus livros preferidos apenas — embora passe também por isso. Talvez o grande atalho a se descobrir de imediato seja de que não há atalho algum. A mutação em um investidor de alto nível requer profundidade, horas de dedicação, estudo e responsabilidade. A real transformação não acontece com leituras dinâmicas. Ao fundar a Empiricus , meu objetivo não era somente que nossos assinantes passassem a investir melhor, como uma modificação marginal no gerenciamento do seu dinheiro.
Sempre acreditei que a pessoa física, devidamente orientada e com seus próprios méritos individuais a partir da dedicação e do esforço, poderia inclusive ter resultados superiores aos profissionais. Essa era a transformação a que a gente se propunha — evidentemente, isso não acontece num passe de mágica. Aos que consideram a crença na capacidade do investidor pessoa física superar os profissionais e institucionais uma espécie de devaneio ou até mesmo de ingenuidade da minha parte, lembro que essa também é rigorosamente a visão de Peter Lynch.
O ponto de partida talvez seja a noção talebiana de que o problema do mundo não são as pessoas que sabem, mas aquelas que não sabem o suficiente. Tenho um problema particular com os “defecadores de sapiência”, para usar a expressão do Contardo Calligaris. Até o conceito mais básico merece ser visto com profundidade. Método, princípios, filosofia e epistemologia valem mais do que a próxima dica quente. Uma recomendação vale para o agora, um método vale para sempre.
A pergunta “o que é uma ação?”, por exemplo, pode ser ultrassimples, mas também permite múltiplas interpretações, algumas delas com certo nível de complexidade. Para o trader, pode ser apenas um sinal que pisca na sua tela de home broker, pertencente a uma tendência de alta ou de baixa, com resistências e suportes a serem respeitados. Para esse sujeito, nada mais importa além das figuras gráficas à sua frente. Já a definição contábil de uma ação normalmente a associa a uma pequena parte de uma empresa, o acesso ao capital social de uma determinada companhia. Contabilmente, está correto. Mas uma ação é mesmo uma parte de uma empresa apenas? Você pode chegar com sua ação de Cosan na sede da empresa e requerer uma reunião com o Rubens Ometto porque deseja trocá-la por uma cadeira, outro pedaço da empresa? Será que uma ação é somente essa definição contábil fria, hermética e etérea? Ou há mais sobre isso? Será que talvez não possamos entender a compra de uma ação como a assinatura de um contrato que lhe dá acesso a um conjunto de direitos e deveres, cujo preço varia conforme a interação social de compradores e vendedores? Ora, se falamos de uma interação social, passamos a falar do ser humano e da forma como ele se relaciona com as ações. Isso tem implicações importantes.
Sou um analista de ações que acredita muito pouco nos analistas de ações, em especial da forma com que tipicamente se apresentam. Warren Buffett é muito legal — aliás, para combinar com o nome do projeto, Buffett é essencial. Por isso, passaremos, claro, por todo o instrumental clássico de valuation. Contudo, não na perspectiva de que conseguiremos identificar um certo valor intrínseco definitivo para aquela respectiva ação. A ideia newtoniana de que existe uma força gravitacional do valor intrínseco B puxando a cotação A, num processo de convergência inexorável, inclusive fere o argumento do parágrafo anterior. Se o preço de uma ação depende da interação social, não há algo verdadeiramente intrínseco ali, ou seja, indissociável, inapartável, independente de algo externo. Se a ação depende da interação e da interpretação humana, como nós a percebemos, porque, afinal, a retórica importa na Economia e nas Finanças (Persio Arida e Deirdre McCloskey perceberam isso nos anos 1980), só pode existir um valor extrínseco. Ou seja, algo que depende também de fora.
Se você não entende o homem — inclusive entende a si mesmo —, dificilmente vai compreender o mercado. Por isso, precisamos passar pelas Finanças Comportamentais, pelos vieses cognitivos e pelos erros que tipicamente cometemos ao investir, bem documentados por Daniel Kahneman e Amos Tversky. Mas também passaremos pelos erros que as próprias Finanças Comportamentais cometem — curiosamente, talvez como um exercício de metalinguagem, elas mesmas têm os seus vieses e precisamos ver a racionalidade sob uma abordagem evolucionária e ecológica, como nos propõem Gerd Gigerenzer. E claro que todo esse processo dialético de influência recíproca entre as pessoas (expectativas) e a realidade (o preço dos ativos financeiros) nos remetem à teoria da reflexividade de George Soros.
O mundo é complexo, aleatório, recheado de incertezas, imprevistos e percalços. Tudo isso também dificulta a identificação do tal valor intrínseco, que, por definição, se liga aos fluxos de caixa futuros do respectivo ativo, trazidos a valor presente por uma taxa de desconto apropriada. Ora, mas como definir os fluxos de caixa futuro se eles estão… no futuro? Diante de tanta incerteza, aleatoriedade e impermeabilidade do futuro, como, então, definir o tal valor intrínseco?
Se Buffett é legal, Nassim Taleb também é. O que queremos, em última instância, é juntar esses dois. Usar todo o instrumental buffettiano clássico para comprar coisas baratas — não na perspectiva de que compramos por A algo que vai convergir para B, sendo B maior do que A. Mas na visão de que o ferramental da análise fundamentalista nos ajuda a tentar ter certeza de que as surpresas, se vierem, estarão no lado positivo. O que define a trajetória das coisas em essência, como propõe Taleb, são os cisnes, sejam eles cinzas ou negros — deixemos a ornitologia de lado e foquemos em tentar fazer esses eventos raros e de alto impacto serem positivos. Se compramos algo muito barato e que tem muito mais a subir do que a cair, basicamente percebemos que aquele preço já embute um cenário muito negativo e que as surpresas, que acontecem com frequência superior ao que normalmente consideramos, seriam potencialmente agradáveis.
Também não acredito na dissociação entre o micro e o macroeconômico. Em países latino-americanos sobretudo, tudo acaba suscetível ao ciclo político-econômico e às diretrizes dos formuladores de política. Os ciclos da economia, dos mercados, dos lucros e da psicologia importam muito. Howard Marks é também um de nossos pilares — ele vai nos ajudar a calibrar quando ter, sistematicamente, mais ativos de risco e quando ter menos.
E, por fim, claro que identificar uma ou outra ação para comprar é útil. Mas sempre pensando numa perspectiva de diversificação e montagem de portfólio. Como resume Ray Dalio, uma das metas de vida é tentar modificar o mindset das pessoas. Em vez de nos perguntarmos “qual o ativo certo para comprar?”, a indagação mais efetiva seria “qual a diversificação correta para se ter?”. Se chegarmos a esse ponto de fato, teremos feito muito mais do que o essencial.
A caminhada começa hoje. Seja muito bem-vindo.