Imagine trabalhar respeitando diretamente os desejos de uma máquina. Pode parecer estranho falar isso depois de um período longo de isolamento, onde os seres humanos voltam a buscar a companhia uns dos outros. Porém, essa realidade não está muito distante com as organizações autônomas descentralizadas — as DAOs, na sigla em inglês.
Essas “empresas sem CEO” nada mais são do que protocolos regidos por contratos inteligentes (smart contracts) dentro de blockchains, a mesma tecnologia usada para criar as criptomoedas.
Falando dessa forma, parece complicado, mas não é. Tomando emprestado a maneira como Vinícius Bazan, Murilo Cortina e Paulo Camargo — todos integrantes da equipe de research de criptomoedas da Empiricus — dividiram o tema em um relatório recente sobre DAOs, dividimos a sigla para ter uma resposta mais clara:
- Organização: É um conjunto de pessoas que forma uma empresa ou entidade destinada a realizar uma tarefa;
- Autônoma: Não necessitam de uma interação humana para acontecer. No caso das DAOs, elas são comandadas pelos contratos inteligentes;
- Descentralizada: Não existe uma “diretoria”, “conselho” ou “presidente” para mandar nessa empresa; todos os participantes da rede podem fazer valer sua vontade.
Esse tipo de organização é uma nova forma de gerenciamento de projetos que surgiu com a criação das criptomoedas e dentro da ideologia libertária — onde o usuário deve ter maior poder de decisão sobre o que acontece com o futuro de uma rede, aplicativo ou protocolo.
Em muitos aspectos, as DAOs se assemelham com empresas: assim como as ações de uma empresa dão poder aos acionistas majoritários e minoritários, quem desempenha o mesmo papel no universo digital são os tokens (criptomoedas) daquela organização.
Decisões como emissão de novos tokens, direcionamento do projeto e até mesmo remuneração dos participantes estão no poder dos usuários. A seguir, você confere como funcionam as DAOs e as oportunidades nesse universo:
Usos das DAOs — e o valor disso hoje
Inicialmente, as DAOs foram usadas para gerir projetos nativos do ambiente digital. Comunidades no GitHub — rede social e programadores — ou mesmo que nascem de grupos dentro do universo digital foram as primeiras organizações do tipo a serem criadas lá em 2013.
Com o passar do tempo, as DAOs se tornaram uma alternativa interessante para a gestão de protocolos de finanças descentralizadas (DeFi).
É o caso da UniSwap (UNI), maior protocolo de DeFi da atualidade e gerido pela comunidade. As tarefas desempenhadas pela UniDAO estão disponíveis no protocolo lançado em 2020.
A partir daí, as DAOs começaram a assumir novos papéis. Outras comunidades, como os entusiastas do Bored Ape Yatch Club (BAYC), os NFTs de macaco, adotaram o modelo para gerenciar o grupo. Cada arte equivale a um “cartão sócio”, que dá aos compradores acesso a festas e eventos do BAYC.
Naturalmente, a emissão de novos NFTs e o ingresso de participantes está sujeito à aprovação da rede.
DAOs em números
Atualmente, o valor de mercado total de DAOs espalhadas pelo universo digital é de cerca de US$ 16 bilhões (R$ 82,72 bilhões, no câmbio atual), de acordo com dados do Coin Market Cap. O volume negociado por protocolos do tipo é de US$ 1,9 bilhão em cerca de 24 horas.
Apesar dos números animadores, a recente queda do mercado de criptomoedas fez com que os projetos alternativos do universo digital perdessem espaço entre as recomendações dos analistas.
Inclusive, os especialistas sugerem manter seus investimentos em criptomoedas mais sólidas desse universo, como bitcoin (BTC) e ethereum (ETH) — nunca excedendo os 5% do seu portfólio em ativos digitais.
Mas se você tem bastante apetite a risco e está disposto a entrar nesse mercado, confira a seguir alguns protocolos promissores dentro do universo das DAOs:
Promissores
- UniSwap (UNI): É um dos projetos mais promissores baseado na blockchain do ethereum (ETH) e o maior protocolo em DAO do mundo. De acordo com o CryptoRank, essa rede tem US$ 7,04 bilhões de valor armazenados em contratos de finanças descentralizadas. São mais de 456 milhões de tokens UNI em circulação neste protocolo.
- Aave (AAVE): O ponto forte desse projeto é a possibilidade de empréstimos em diferentes redes (blockchains). Outro ponto positivo é que, no momento, a AAVE tem travado cerca de US$ 17 bilhões nos mais diferentes protocolos — uma forma de “colchão de segurança”, caso um deles desapareça. O retorno do staking — uma espécie de dividendos no universo cripto — pago aos investidores também é alto, o que torna o projeto mais atrativo do que os demais.
- Maker (MKR): Tem como ponto forte o fato de que, durante a crise da criptomoeda Terra (LUNA), manteve a paridade de sua stablecoin e continua sendo um dos projetos mais estáveis e promissores do mercado.
Uma DAO brasileira de exemplo
As infinitas possibilidades dentro do universo digital também dão espaço para o nascimento de projetos promissores aqui no Brasil. É o caso da DAO criada por Antonio Carlos Amorim, conhecido como Carl Amorim. Ele foi um dos fundadores da primeira organização autônoma totalmente descentralizada do Brasil, a Kairós.
A rede da Kairós pode sugerir, criar e engajar novos projetos. A ideia é unir pessoas que podem fazer — e pagá-las por isso — com atividades que precisam ser feitas, nas palavras de Amorim. Ele não se define como o “CEO” da Kairós, mas como quem concebeu a ideia do código.
“Vamos supor que eu queira montar uma frota de mototáxi. Eu faço a sugestão e quem estiver interessado contribui: um entra com as motos, outros com sua experiência em logística, outra pessoa vai montar o aplicativo e assim o projeto sai do papel”, diz.
Uma “uberização” 2.0?
A remuneração também é estabelecida pela rede e varia para cada caso. Mas, diferentemente do que se possa pensar, essa não é uma nova forma de trabalho informal — ou, no jargão desse universo, uma nova forma de “uberização”.
Amorim explica que, no caso do Uber, o motorista não tem poder de decisão sobre o aplicativo. No caso de uma DAO, o trabalhador não apenas contribui com sua força de trabalho, mas também com propostas para beneficiar os demais participantes.
Essa diferença é crucial na hora de pensar a organização do trabalho. Ao mesmo tempo, a rede organiza o pagamento — automatizado e segurado pelo protocolo — ao desempenho e avanço do projeto.
Uma pegadinha: não confunda DAOs com empresas descentralizadas
Existem organizações autônomas (portanto, geridas por código) descentralizadas (ou organizadas por rede) e existem empresas que descentralizam suas operações.
Esse segundo modelo é o mais comum no universo das criptomoedas. De maneira geral, a rede continua fazendo propostas e aprovando projetos, mas existe um grupo por trás do código — que pode ser uma fundação de desenvolvedores, como é o caso do Ethereum Foundation, da Terraform Labs ou mesmo da Dogecoin Foundation.
Assim, as decisões de rede acabam ficando mais centralizadas do que no modelo de DAOs, em que inexiste um corpo de desenvolvedores por trás.
Vale ressaltar, porém, que isso não significa que um tipo de projeto é melhor do que o outro por possuir uma fundação por trás — o dogecoin não é considerado um bom investimento, mas a comunidade é tão engajada que criou uma fundação para cuidar do protocolo.
As vantagens das DAOs frente a outros projetos
As DAOs acabam sendo projetos mais dinâmicos e que solucionam problemas de maneira mais ágil do que os protocolos com fundações por trás.
Além disso, elas conseguem se organizar de maneira mais orgânica, podendo alterar seu curso e suas recompensas ao longo do desenvolvimento das atividades.
Regulação e oligopólio: os problemas das DAOs
Nem tudo são flores para essa nova forma de organização do trabalho, a começar pela regulação desse novo universo.
As organizações autônomas descentralizadas — assim como o mercado de criptomoedas em geral — estão em um limbo regulatório.
Rodrigo Borges, advogado, membro fundador da Oxford Blockchain Foundation e colunista da MIT Technology Review Brasil, dedica um texto inteiro para explicar o problema das DAOs.
O que diz a lei que pode reger as DAOs
Em 2021, no Wyoming, estado dos EUA, foi registrada a primeira legislação específica para DAOs. “As DAOs podem ser registradas junto aos órgãos do governo do Wyoming, sendo equiparadas às sociedades limitadas LLC (Limited Liability Company, sociedades de responsabilidade limitada)”, escreve ele.
A legislação ainda exige que, para serem legalmente reconhecidas, as DAOs — ou LAOs (Limited Liability Autonomous Organization), como são designadas pelo governo estadunidense — precisam identificar em seus estatutos sociais os contratos utilizados para controle da organização, bem como informar qualquer atualização ou alteração neles.
Essa é uma forma de proteger o usuário de possíveis golpes ou empresas pouco transparentes do setor. Entretanto, essa interpretação é específica para os EUA, ainda não se estendendo a países como o Brasil.
Do mesmo modo, a emissão de tokens (criptomoedas) de governança das DAOs também estão no limbo regulatório: ao mesmo tempo que boa parte dos países reconhece moedas digitais como commodities, esses tokens se comportam como ações de uma empresa — e, portanto, deveriam estar sob jurisdição da SEC, a CVM americana.
Oligarquia? Voto censitário?
Vamos voltar alguns passos: para o usuário conseguir interagir com a rede, ele precisa possuir os tokens de governança daquela blockchain. Essas criptomoedas específicas da rede permitem negociações e direito de voto nas decisões coletivas.
Dependendo da maneira como a blockchain é desenhada, usuários com mais tokens podem acabar dominando a rede e fazer valer sua vontade sobre os demais detentores de criptomoedas. Isso forma uma oligarquia dentro da rede, em que poucos dominam.
Esse sistema também abre margem para o problema do voto censitário, onde, para ter poder de decisão, o usuário precisa atender a certos critérios econômicos. No caso, um número mínimo de tokens pode excluir usuários menores das decisões da rede.
*Colaboraram com esta matéria Rocelo Lopes, CEO da Smartpay, e o professor Fulvio Xavier, do MBA da faculdade de tecnologia FIAP.