A eutanásia do rentista
Ainda não vivemos um momento inflacionário, muito pelo contrário, vivenciamos um período deflacionário. As taxas de juros estão baixas, mas a taxa de juro real ainda é positiva
Hoje, eu quero falar com você sobre a eutanásia do rentista. Esse tema veio à minha mente muito em função do fato de que venho ouvindo a biografia do Paul Volcker, presidente do Federal Reserve (Banco Central dos EUA) entre 1979 e 1987.
Paul Volcker ficou famoso por tirar os Estados Unidos de um processo inflacionário iniciado na década de 1970, período marcado justamente pela eutanásia do rentista, quando a taxa real de juro ficou negativa.
Antes, vale a pena passar pelos dez anos que antecederam essa ruptura, quando ocorreu o fim do padrão-ouro.
Em agosto de 1971, houve uma ruptura nos EUA e no mundo durante o governo Nixon, na qual os Estados Unidos abandonaram o que foi acordado lá em 1944 no pós-guerra no tratado de Bretton Woods, que colocou o dólar como reserva de valor global.
No padrão-ouro, o dólar mantinha um câmbio fixo com ouro, com uma taxa de 35 dólares por onça do metal precioso. Essa conversão, viva até agosto de 1971, já estava ameaçada desde o início dos anos 1960.
Paul Volcker relata tal ameaça de uma forma muito interessante, pela seguinte constatação: já ocorria um desequilíbrio anterior nos EUA pelos gastos excessivos com programas espaciais e com a Guerra do Vietnã. Ao mesmo tempo, países como o Japão e Alemanha registravam fortes ganhos de produtividade.
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Então, já era possível observar uma demanda de diversos bancos centrais que queriam vender seus dólares em troca de ouro.
E, durante esse período, as reservas (o passivo americano), só crescia. Paul Volcker comenta o desequilíbrio constantemente no início da sua biografia, por avaliar o descompasso como uma bomba-relógio, que deveria ser desarmada em algum momento. Até que chegou ao ponto, lá em 1971.
E a transição não foi tranquila, até porque o governo tentou evitar esse problema de todas as formas.
Mas por que é que eu estou falando sobre isso?
Um dia a conta chega
Ainda não vivemos um momento inflacionário, muito pelo contrário, vivenciamos um período deflacionário. As taxas de juros estão baixas, mas a taxa de juro real ainda é positiva.
Em contrapartida, é bem provável, de acordo com os relatos de Lacy Hunt – um dos maiores especialistas em política monetária do mundo – que em breve, não em um curtíssimo prazo, poderemos ver um período inflacionário.
E é neste ponto que mora a tal da eutanásia do rentista, porque, hoje mesmo, no momento em que eu escrevo a newsletter, o Fed – em sua ata – relatou estar estudando uma política de manipulação da curva de juros, algo conhecido em inglês como yield curve control.
Ainda ocorre um debate muito sério no processo decisório, mas provavelmente o governo não terá outra saída. Até porque todos os países estão extremamente endividados.
Imagine agora o Fed, por exemplo, voltar com uma taxa de juros para algo como 3% ou 4%. Só o custo da dívida já afundaria o país, colocando-o em dominância fiscal. O mesmo ocorre aqui no Brasil, que também está vendo a sua dívida explodir.
Hoje, vivemos num mundo no qual há uma busca desenfreada por ativos que apresentam um potencial de crescimento no longo prazo.
Mas, na verdade, a história nos mostra que períodos de taxas de juros mais baixas, ao invés de proporcionar ganhos de produtividade, representam algo diferente: uma maior especulação financeira, um maior nível de alavancagem e uma expansão da relação entre preço e lucro.
Eu, que sou veterano do mercado, já vi momentos em que a bolsa negociava com relações de P/L (Preço sobre Lucro) bem baixas, cinco, seis, sete vezes…
Naturalmente, era um período de taxas de juros mais elevadas. Contudo, observando agora empresas negociando com múltiplo P/L de 50 vezes, acredito ser uma aberração: acho que vivemos uma febre especulativa.
Tivemos um período peculiar com um enorme fluxo, não de recursos pelo Brasil, mas através de uma entrada imensa de investidores ociosos em suas casas e que vieram para a bolsa.
Isso ocorreu não só no Brasil, mas nos Estados Unidos também. Há papéis que estão subindo completamente desconectados da economia real, pelo menos a meu ver.
Inflação de custos como grande ameaça
Neste ano houve uma regulação chamada IMO 2020, praticamente ignorada pela mídia, pela qual o comércio marítimo, que representa 90% do comércio global, encareceu.
O IMO 2020 foi uma regulação que exigiu mudanças no combustível, com redução do dióxido de enxofre. Para cumprir com a obrigação, os navios e as operadoras tiveram, ou estão tendo que arcar, com um custo muito elevado, e este custo vai ser repassado para o consumidor.
Além disso, fala-se muito de questões ligadas ao meio ambiente, que aumentam os custos de produção e incorrem em processo inflacionário.
Discutem-se também mudanças na cadeia de suprimentos, com empresas saindo da China e voltando para os Estados Unidos, saindo da China e indo para Vietnã. Tudo isso tende a ter uma contribuição inflacionária.
Quero chamar sua atenção para isso porque, a partir do momento em que existe convergência para um período de maior inflação (e isso eventualmente ocorrerá), o mais provável é ocorra compressão nestes múltiplos P/L.
Muitos olham para trás, para algo que ocorreu nos EUA, principalmente durante a década de 1980, o período do Paul Volcker, e observam grande expansão, extensa valorização do índice S&P 500, e dizem que é possível algo semelhante ocorrer no Brasil.
Não estou aqui para falar que não seja possível, mas é importante notar que o grande motor de valorização naquela época, além de ganhos de produtividade, foi sim a chegada do baby boomer ao mercado de trabalho.
Este evento demográfico, que ocorreu nos EUA, não está para acontecer aqui e em nenhum lugar no mundo. Na verdade, caminhamos em direção ao fim do bônus demográfico.
Então fica essa dica: prepare-se para a eutanásia do rentista.
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