A última vez que o presidente da China, Xi Jinping, e o colega russo, Vladimir Putin, se sentaram frente a frente, declararam uma amizade sem limites e a chegada de uma nova era nas relações internacionais.
Mais de 200 dias depois, Xi e Putin se encontraram novamente em uma cúpula regional na cidade de Samarcanda, no sudeste do Uzbequistão. De lá pra cá, muita coisa mudou — inclusive na inabalável relação entre Pequim e Moscou.
As forças russas sofreram perdas no campo de batalha na Ucrânia. Enquanto isso, Pequim se vê cada vez mais em desacordo com os países ocidentais por causa de Taiwan e da questão dos direitos humanos em Xinjiang.
Mas foi a guerra na Ucrânia que acabou destacando as diferentes trajetórias de China e Rússia no cenário internacional: a primeira é uma superpotência em ascensão, cuja foco é superar a economia dos EUA, e a outra é uma antiga força geopolítica lutando com um conflito desgastante.
Esse descasamento de posições fez com que Xi demonstrasse preocupações com os efeitos colaterais da guerra na Ucrânia — a qual Pequim nunca manifestou apoio público, mas sempre esteve do lado russo nos bastidores.
E, em uma rara admissão, Putin disse nesta quinta-feira (15) estar ciente das “perguntas e preocupações” da China sobre o conflito.
“Valorizamos muito a posição equilibrada de nossos amigos chineses em relação à crise ucraniana, entendemos suas perguntas e preocupações sobre esse assunto e é claro que esclareceremos tudo isso em detalhes”, disse Putin.
As primeiras observações de Putin sobre a preocupação chinesa com a guerra ocorrem poucos dias depois de uma derrota relâmpago de suas forças no nordeste da Ucrânia.
Putin e Xi: amigos para sempre
A parceria entre Putin e Xi é considerada um dos desenvolvimentos mais significativos em geopolítica após a ascensão da própria China nos últimos 40 anos.
E, no primeiro encontro cara a cara desde a guerra, Xi disse que estava muito feliz por encontrar um "velho amigo" novamente, após Putin afirmar que tentativas grosseiras dos EUA de criar um mundo unipolar falhariam.
"Diante das mudanças no mundo, em nossos tempos e na história, a China está disposta a trabalhar com a Rússia para desempenhar um papel de liderança na demonstração da responsabilidade das grandes potências e instilar estabilidade e energia positiva em um mundo em turbulência, " Xi disse a Putin.
Para Putin, o encontro envia uma mensagem crucial de que ele continua sendo um ator global, com amigos que compartilham suas visões autoritárias e determinação de criar uma nova ordem mundial na qual os EUA não dominam mais.
Sob a ótica Xi, sua primeira viagem ao exterior em quase três anos marca seu ressurgimento diplomático antes de um congresso do Partido Comunista em outubro, quando ele espera garantir um terceiro mandato, quebrando precedentes.
- Leia também: Putin encurralado: as opções que restam ao líder russo após a inesperada perda de terreno na guerra na Ucrânia
China e Rússia: um equilíbrio delicado de forças
A China manteve um equilíbrio delicado na guerra entre a Rússia e a Ucrânia, pedindo paz e endossando as queixas russas de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) era a culpada por causa da expansão da aliança.
Xi tentou dar apoio moral a Putin sem apoiar totalmente a invasão ou enviar assistência financeira ou militar que incorreria em sanções secundárias.
Tendo se comprometido a manter relações comerciais normais com Moscou, a China continuou a exportar mercadorias para a Rússia, bem como importar petróleo e gás russos. O comércio bilateral cresceu 31% nos primeiros oito meses de 2022, segundo dados da alfândega chinesa.
No entanto, é improvável que Xi ofereça apoio mais concreto a Putin. Fazer isso pode arriscar um retrocesso ocidental que exacerbaria uma lista crescente de desafios domésticos, incluindo uma economia chinesa em desaceleração, crise imobiliária e descontentamento público com políticas rígidas de covid- zero.
A Taiwan de Xi e a energia de Putin
Enquanto Xi segue evitando declarar apoio publicamente à Rússia na guerra contra a Ucrânia, no encontro de hoje, Putin apoiou explicitamente a China em relação a Taiwan.
"Pretendemos aderir firmemente ao princípio de 'Uma China'", disse Putin. "Condenamos as provocações dos EUA e seus satélites no Estreito de Taiwan", acrescentou.
A China realizou exercícios militares em estilo de bloqueio em torno de Taiwan depois que a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, visitou a ilha no mês passado. O governo de Taiwan rejeita veementemente as reivindicações de soberania da China.
Enquanto o Ocidente tenta reduzir sua dependência da energia russa, Putin procura aumentar as exportações de energia para a China e a Ásia, possivelmente com um oleoduto através da Mongólia.
Em uma reunião com Xi e Putin, o presidente da Mongólia, Ukhnaagiin Khurelsukh, disse que apoiava a construção de oleodutos e gasodutos da Rússia para a China via Mongólia.
A Rússia estuda há anos a possibilidade de um novo e importante gasoduto — o Power of Siberia 2 — viajar pela Mongólia levando gás russo para a China.
Ele transportará 50 bilhões de metros cúbicos de gás por ano, cerca de um terço do que a Rússia normalmente vende para a Europa ou equivalente aos volumes anuais do Nord Stream 1.
*Com informações do Washington Post e da Reuters