A Metamorfose de Franz Kafka e o mercado na pandemia
Não se enganem: Covid-19 não deu origem ao atual problema econômico. Como é próprio de um catalisador, ela apenas fez com que o resultado de políticas, no mínimo, questionáveis, ocorresse mais rápido e de forma mais drástica.
Recentemente, decidi reler “A Metamorfose”, de Franz Kafka. Para quem não conhece a história, o personagem principal é Gregório (ou Gregor, a depender da tradução), uma pessoa que odiava o trabalho, mas tinha nele sua única função na vida.
Ele morava com a família, que enfrentava dificuldades financeiras, então dinheiro era a única preocupação comum.
Resumindo bem: um belo dia, ele acorda e se vê literalmente transformado em uma barata gigante e asquerosa. Por conta disso, deixa de trabalhar.
A família o isola do resto do mundo e, apesar de uma certa ajuda da irmã no início, a situação de Gregório vira motivo de um certo rancor pelo agravamento da situação financeira e por sua completa inutilidade.
Afinal, o que uma barata gigante poderia fazer de útil?
O final é triste, e aqui tem um spoiler para quem não leu: Gregório morre, abnegado e abandonado por sua família, de inanição.
Narrativa à parte, o que me chamou atenção nessa releitura foram duas coisas. A primeira é que Gregório aceitou relativamente bem sua transformação quase bizarra pois, no fim das contas, ele apenas adquiriu o corpo físico da forma como já ele (e provavelmente muita gente) se sentia por dentro. A segunda: o esforço todo da família em reestabelecer a normalidade e manter as aparências, que levaram ao completo abandono de um de seus membros. Por isso mesmo, a obra é um tapa na cara da hipocrisia humana.
Trazendo isso para os dias atuais, até que ponto tudo que estamos vivendo agora não mostra que, da maneira como o mundo havia sido construído e estava “girando”, todos nós acabamos por virar o grande vírus deste planeta?
Afinal, verdade seja dita: à parte do estresse psicológico causado pelas incertezas deste momento, nosso ar está menos poluído e nosso cansaço físico causado por pouco sono e muito engarrafamento está bem menor, por exemplo. Isso só deixa claro o quanto estávamos fazendo mal uns aos outros e ao nosso planeta, assim como um vírus para o qual não se tem a cura.
Outro ponto é o seguinte: como na obra, é nítido o esforço sobre-humano que se está fazendo para retomar nosso “antigo normal”, a ponto de haver uma total e completa inversão de valores.
Essa é a grande crítica a respeito da flexibilização do isolamento social sem que haja cura nem vacina. E, independentemente de qual seja minha opinião a respeito, até eu já ponderei muito a questão toda do “fique em casa” versus o impacto econômico que isso causa.
A retomada da vida como ela era tem muito mais a ver com o aspecto psicológico da questão. As pessoas têm a necessidade de se sentirem seguras e amparadas, por isso, mudanças bruscas não são bem aceitas por muitos de nós.
Entretanto, uma pessoa muito sábia uma vez me disse algo que levo pra vida: “até a merda é macia e quentinha”. E esse, meus caros, pode ser exatamente o lugar a que leva nosso comodismo.
Nos últimos dias, tenho lido incontáveis artigos sobre recuperação do mercado financeiro e de capitais no mundo. Por um lado, empresa X anunciando novo IPO bilionário e banco Y falando que não confia na tese de investimento em ouro. Já sobre os impactos de a economia americana literalmente imprimir mais de US$ 2 trilhões, nada. A respeito da destinação de boa parte desse dinheiro novamente para as “too big to fail”, nada. Sobre todas as repetições de condutas acontecidas antes, durante e depois da crise de 2008, nada.
Afinal, é muito mais cômodo massagearmos os egos uns dos outros a fim de acreditarmos que não somos esse bicho nojento por dentro, e a forma como nossa economia e sociedade rodam hoje fazem sentido, com apenas pequenos ajustes a serem feitos.
Mas, numa relação causa-efeito, não se enganem: Covid-19 não deu origem ao atual problema econômico. Como é próprio de um catalisador, ela apenas fez com que o resultado de políticas, no mínimo, questionáveis, ocorresse mais rápido e de forma mais drástica.
Exatamente por ser uma tecnologia que se opõe a todo esse status quo de forma literal - há grandes críticas do próprio Satoshi Nakamoto sobre os desdobramentos da crise de 2008 e foi ela, por sua vez, um dos grandes catalisadores da criação do Bitcoin (BTC) – aqueles que conhecem o assunto não se espantam com a retomada do movimento de alta a longo prazo iniciado nessa última semana: nos últimos 7 dias, o BTC acumula alta de quase 20% e o ETH, moeda digital do protocolo Ethereum, superou os 30% no período.
A crise atual é a “prova de fogo” do mercado de criptomoedas que, como acreditava, estão se saindo extremamente bem: boa parte dos criptoativos estão sendo negociados hoje a preços superiores ao período anterior à Covid-19.
Tentar retomar a “vida normal” sem considerar tudo isso é uma utopia. Sim, é muito mais fácil “trancar uma barata gigante no quarto e esperar que ela morra de fome” do que reconhecer que temos um problema e lidar com ele.
Mas uma hora a conta chega, e a juros mais astronômicos que de cheque especial. Será que, se continuarmos procrastinando, teremos como pagar?
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