Pessoas morrem.
É inevitável.
Se Ana Cláudia Quintana Arantes está certa, “A morte é um dia que vale a pena viver”. Você deve concordar comigo que a vida diante da perspectiva de seu encerramento traz reflexões importantes.
A finitude do nosso tempo na Terra é, para muitos, angustiante e tratada como um tabu. Ninguém quer falar sobre, mas a sua chegada é inevitável.
Ana Arantes utiliza em seu livro da metáfora de William Breitbart sobre a morte ser um muro. “Quaisquer que sejam nossos caminhos e escolhas, o muro nos aguarda.”
A autora fala dos arrependimentos levados ao caixão e tudo se remete ao tempo vivido até o encontro com o muro.
“Chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer” – como já dizia Clarice Lispector.
Já fiz reflexões sobre a morte por aqui e ressaltei a eternidade de um legado quando Harry Markowitz faleceu. Markowitz fez história com a Teoria Moderna de Portfólios e será sempre lembrado pelos estudos sobre o aprimoramento de carteiras de investimentos.
Dessa vez, o fim chegou para Charlie Munger.
Com praticamente 100 anos de vida, Munger fez seu nome no mercado financeiro pelo sucesso da Berkshire Hathaway – empresa que comandava ao lado do seu fiel companheiro de vida, Warren Buffett –, por sua mentalidade multidisciplinar e pela longevidade muito bem-sucedida de seus investimentos.
Estou longe de querer transformar essa coluna em um obituário de grandes nomes do mercado financeiro, mas a menção honrosa é inevitável.
Grandes nomes criam grandes feitos que vão muito além do seu tempo em vida.
Um outro grande exemplo é Jack Bogle, fundador da Vanguard, gestora de recursos desde 1974, conhecido como o criador dos investimentos passivos – aqueles que buscam replicar o retorno de um índice.
Bogle faleceu em 2019 sem nos deixar em maus lençóis.
Os seus esforços com o avanço dos investimentos passivos tornaram o acesso de investidores individuais ao mercado financeiro possível, simples e barato, o que antes era lugar especial das grandes instituições.
A Vanguard, parte do legado de Jack, segue sendo referência no mercado mesmo após a morte do fundador.
O que começou baseado na ideia de uma empresa “do investidor para o investidor” tem hoje cobertura mundial e já bateu a marca dos US$ 5 trilhões sob gestão.
Lendas vivas do mercado
Sem nos atermos à morte carnal, existem ainda os casos de figuras importantíssimas do mercado que seguem vivas, mas que souberam criar grandes negócios e passar aos seus sucessores ainda em vida.
Um dos meus destaques preferidos é Ray Dalio.
Dalio criou a Bridgewater em 1975 e foi visionário na forma de gerir dinheiro.
Construiu uma estrutura de portfólios capaz de prosperar em praticamente qualquer cenário macroeconômico – o All Weather – e outra série de estratégias que se mostraram vencedoras ao longo dos anos, evidenciando ainda mais o seu bom trabalho.
Ray ainda é ativo na comunicação sobre o mercado financeiro e continua propagando conhecimento como ninguém, mas soube fazer o que poucos conseguem: encerrar seu capítulo como gestor e controlador da Bridgewater, empresa que fundou há tantos anos.
Ray Dalio passou seu legado adiante ainda em vida e com maestria.
Em setembro do ano passado, a saída do controle pelo fundador foi finalizada após um processo gradual realizado ao longo de 10 anos.
O board é atualmente formado por Greg Jense, Bob Prince e Karen Karniol-Tambour, que já faziam parte da gestora e estavam ao lado de Ray durante a última década decisória.
Por último cito James Harris Simons (Jim Simons, como é mais conhecido), fundador da Renaissance Technologies.
Matemático de formação, Jim foi professor de Harvard e desenvolvedor de softwares do IDA (Instituto de Defesa e Análise) para quebrar códigos de espionagem soviéticos antes de entrar no mercado financeiro, quando criou a Renaissance em 1988.
Sua ideia era tornar possível usufruir do seu conhecimento matemático para investir no mercado de forma diferente do que era feito até ali, utilizando a modelagem matemática e análise quantitativa em suas operações.
O uso de computadores ainda estava sendo implementado e havia muita desconfiança da sua utilização em análises, mas James seguiu em frente e demonstrou com resultados impressionantes o sucesso do seu modelo.
O fundo principal da casa, o Medallion Fund, teve ao longo dos anos uma performance média de 40% ao ano. Mesmo na crise de 2008, a estratégia trouxe retornos positivos aos seus investidores.
Simons, como um bom professor, soube perpetuar seu conhecimento e crescer cada vez mais o negócio, tornando a gestora uma referência no mercado quantitativo. Em 2010 ele renunciou ao cargo de presidente-executivo e, em 2021, deixou a presidência do conselho da gestora.
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Hoje a Renaissance possui 300 funcionários, sendo 90 deles PhDs em matemática e áreas correlatas. A base de dados cresce mais de 40 terabytes por dia, sendo utilizados mais de 50 mil computadores para o funcionamento das operações.
Ana Arantes explica que cada morte, seja ela existencial ou simbólica, busca por três padrões de sentido: perdão, lembrança e diferença.
O terceiro, pelas palavras dela, “é a certeza de que fizemos a diferença naquele tempo que termina para a nossa história, deixando um legado, uma marca que transformou aquela realidade que agora ficará fora da sua vida”.
Para os nomes aqui citados, o que fica é um legado cultivado, nutrido e garantidor de bons frutos pelos próximos anos.
Foram pessoas que construíram em vida algo muito maior do que eles mesmos e que souberam como tornar seus feitos em algo contínuo e, ouso dizer, possivelmente eterno.
Pessoas se vão.
Nos resta reconhecer o que deve ficar.
Grande abraço e até a próxima,
Rafaela Ribas