Entre as muitas contas que a equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro vai herdar a partir de 1º de janeiro, uma interessa em particular aos acionistas da Eletrobras. E eu não me refiro a uma possível privatização da holding de energia, mas das dívidas relacionadas ao empréstimo compulsório.
Trata-se de um esqueleto que remonta aos anos 1960 e já custou mais de R$ 18 bilhões em provisões no balanço da estatal.
A Eletrobras entende que metade dessa fatura cabe à União. E, enquanto se defende de milhares de processos movidos por consumidores, principalmente grandes indústrias, foi à Justiça contra o próprio controlador.
Seja qual for o resultado da disputa, qualquer redução nesse valor pode representar um ganho para a empresa - e para quem tem as ações. Mas a verdade é que pouca gente parou para se debruçar sobre o assunto.
Depois do governo, os principais acionistas da Eletrobras hoje são o Banco Clássico, controlado pelo empresário Juca Abdala, e a 3G Radar, gestora que possui entre os sócios a 3G Capital - de Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles.
Até agora, as decisões judiciais relativas aos empréstimos compulsórios só trouxeram dor de cabeça para a estatal. Eu procurei a Eletrobras para saber como a empresa está lidando com a questão, mas a empresa não quis dar entrevista.
Débito em conta
Para entender do que se trata o tal empréstimo compulsório e de onde vem essa dívida bilionária que a Eletrobras quer rachar com a União, é preciso voltar no tempo. Mais precisamente a 1962, quando o governo instituiu a cobrança como uma forma de financiar a expansão do setor elétrico.
O empréstimo compulsório vinha todos os meses nas contas de luz de empresas que consumiam pelo menos 2 mil quilowatts por mês e durou até 1993.
Os problemas surgiram na hora de devolver o dinheiro. Vários consumidores entraram na Justiça para questionar a forma de correção dos valores. Existem quase 4 mil processos tramitando sobre esse tema, de acordo com o último dado divulgado pela Eletrobras.
Entre as empresas que ganharam na Justiça a correção do empréstimo compulsório estão gigantes como as siderúrgicas CSN, Gerdau e Usiminas. Juntas, elas esperam receber mais de R$ 4 bilhões.
O rombo do compulsório aumenta a cada trimestre para a Eletrobras. Apenas no último balanço, referente ao período de julho a setembro, as provisões para fazer frente às ações aumentaram em mais R$ 1,4 bilhão.
Outras ações, que questionam a data final da correção da devolução do empréstimo compulsório, também têm potencial de adicionar alguns bilhões à fatura.
De que bolso vai sair
Para tentar reduzir o prejuízo com as condenações, a Eletrobras decidiu ela própria ingressar na Justiça, mas contra o seu principal acionista.
A estatal alega que o empréstimo compulsório foi estabelecido para favorecer a União e que atuou apenas na arrecadação e e administração dos recursos.
Como a Fazenda Nacional aparece com responsabilidade solidária em vários processos, a Eletrobras cobra o reembolso de metade dos valores que pagou nas ações sobre a correção.
Esse caso está parado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Até agora, o parecer do relator do processo, ministro Mauro Luiz Campbell Marques, é contrário à Eletrobras.
Risco ou oportunidade?
A verdade é que ninguém sabe ao certo o quanto a Eletrobras deve com o empréstimo compulsório nem o quanto dessa conta vai sobrar para a empresa.
Para sócio de uma gestora que lidou com o tema do compulsório, a fatura é subestimada pela Eletrobras e pode chegar aos R$ 30 bilhões.
"Milhares de indústrias foram afetadas e nos últimos anos surgiram escritórios de advocacia especializados nesse tema", ele diz. Muitas empresas, inclusive, optaram por vender esses créditos que têm a receber com desconto para investidores especializados na recuperação de ativos com pendências judiciais.
Apesar de o risco do buraco ser ainda maior do que o já provisionado, a aposta de outro gestor com quem eu conversei é que o valor efetivamente pago pela Eletrobras será menor.
A expectativa desse gestor é que a empresa faça algum tipo de acordo que agilize o pagamento da dívida do compulsório, em troca de um abatimento no valor. Mais ou menos como aconteceu no acordo fechado pelos bancos na correção dos planos econômicos.
Também não está claro o que acontecerá com o compulsório caso o processo de privatização da Eletrobras seja levado adiante no governo Bolsonaro. Mas é certo que esse risco entrará na conta dos potenciais candidatos à compra.
Embora o empréstimo compulsório seja mais uma incerteza que paira sobre a Eletrobras, o mercado reconheceu os avanços na governança da estatal nos últimos anos. As ações ordinárias (ON) da empresa acumulam alta de quase 24% no ano, quase o dobro dos 13% do Ibovespa. Nos dois anos e meio de gestão Temer, os papéis da estatal mais que dobraram de valor.